por Matheus Pichonelli
Quando o Capitão Nascimento, com o coturno na
garganta do traficante “Baiano”, entregou a escopeta nas mãos do Soldado
Mathias e determinou a execução do bandido com um balaço no rosto, as salas de
cinema do Brasil vibraram como torcida em final de campeonato. Como em uma
arquibancada, houve quem se levantasse e aplaudisse a cena de pé, algo
inusitado para uma sessão de cinema. O Brasil que pedia direitos humanos para
humanos direitos estava vingado.
José Padilha precisou praticamente desenhar, em Tropa
de Elite 2, que aquela escopeta estava voltada, na verdade, para o rosto da
plateia. Mas a plateia, em sua sanha punitiva, parecia incapaz de refletir e
entender que a tortura, os sacos plásticos e a justiça por determinação própria
eram a condenação, e não a redenção, de um país de tragédias cotidianas. Nos
dois filmes, todos estavam de alguma forma envolvidos na criminalidade –
corruptos e corruptores, produtores e consumidores, eleitos e eleitores – mas
só alguns iam para o saco de tortura. As consequências dessa indignação
seletiva estavam subentendidas, mas muitos não as captaram: nas camadas
superficiais da opinião pública, o apelo a soluções simples é sempre tentador.
(Em uma das cenas do segundo filme, Nascimento é aplaudido de pé ao chegar a um
restaurante de bacanas após comandar o massacre em um presídio. Padilha
mostrava ali que a que violência denunciada em Tropa de Elite não era só
caso de policia, mas uma chaga aberta e diariamente cutucada por quem recorre,
no discurso ou na ação, a soluções arbitrárias contra um caos legitimado).
É possível que este mesmo Brasil que transformou em
heroi um personagem complexo e vacilante como o Capitão Nascimento, personagem
interpretado por Wagner Moura, não tenha sequer franzido a testa, na vida real,
pelo sumiço do ajudante de pedreiro Amarido de Souza, de 47 anos. Para quem não
sabe, Amarildo desapareceu no dia 14 de julho após ser levado para a sede da
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Ninguém sabe ninguém viu o
que aconteceu desde então (repita-se: em uma unidade PACIFICADORA). Isso porque
as câmeras de monitoramento da região, estranhamente, não registraram a
movimentação. Segundo um inquérito aberto pela Divisão de Homicídios da Polícia
Civil fluminense (e encaminhado ao Ministério Público do Rio), Amarildo, que
era epilético, foi torturado, morto e seu corpo, ocultado. Foram indiciados dez
policiais militares lotados à época na UPP, entre eles o ex-comandante da
unidade, major Edson dos Santos.
Na Justiça, todos terão direito a se defender, e é
bom que assim seja. Direito que o ajudante de pedreiro não chegou a vislumbrar
– seu erro fatal, segundo a investigação, foi ter se negado a fornecer
informações sobre traficantes do morro, a quem supostamente preparava churrascos.
Sua versão da história será sempre um mistério: no método de depoimento
informal aplicado supostamente pelos PMs – com direito a choques elétricos, de
acordo com o inquérito – a verdade dos fatos é a primeira a morrer sufocada.
Amarildo não foi a primeira e fatalmente não será a
última vítima. Nem da violência nem do descaso nem da ignorância. Os aplausos
da plateia abobada de Tropa de Elite são reforçados todos os dias,
inclusive quando o governador diz: “E daí? Antigamente havia muito mais
Amarildos do que hoje”. Tanto Amarildo como o governador não são pontos fora da
curva. São uma legião, porque são muitos.
No país das indignações seletivas, a aceitação da
tortura é a manifestação inequívoca de um estado de guerra e barbárie
permanente no qual a convivência humana é simplesmente inviável. No filme 2001
– Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick criou uma alegoria para ilustrar
a origem deste estado: quando um grupo de macacos identifica em uma ossada um
arsenal de guerra e provoca uma dissidência; com os ossos na mão, passam a agir
como base na violência, na coação, na briga pelo território, pelo privilégio,
pela dominação de uns pelos outros. É quando os animais se humanizam.
Ao longo dos anos, esta humanidade barbarizada
caminhou em direção ao que se chama civilização, em que pese o fato de
alguns dos maiores morticínios terem sido praticados nos séculos XX e XXI (a
morte por gás sarin não é menos dolorosa que um golpe de machado). Em outros
termos, significa que entre um símio e outro há uma regra de conduta, baseada
em lei, que impede o uso dessa arma para a imposição da força. Essa lei, em
tese, é o que evita o aniquilamento humano. Inevitavelmente, esta cortina
frágil é rasgada todos os dias por quem não consegue identificar a humanidade
no outro. Voltamos um pouco ao estágio pré-civilizatório toda vez que
testemunhamos um crime motivado por ciúmes, por território, por controle, por
motivo fútil, por necessidade. Mas, em vez de distribuir ossos e oficializar o
aniquilamento, optamos por criar o Estado, a legalidade e armamos a polícia, a
detentora do monopólio legítimo da violência. Mais do que ninguém, ela é a
força responsável por impedir que os símios espalhados pelo mundo ajam conforme
seus instintos – e sejam punidos em casos de infração. Tem as armas para isso.
Quando aplaudimos a tortura policial, no entanto, a
mensagem passada aos nossos supostos guardiões é que esta arma pode ser usada
como bem entenderem, e não em favor de uma paz possível prevista em lei. É como
se a plateia exultante de Tropa de Elite, iguais aos macacos de 2001,
dissessem: “danem-se as leis, somos todos neandertais”.
O apelo à tortura como consequência da segurança é,
portanto, a confissão e a aceitação de uma incapacidade ancestral. Em vez de
segurança, o que ela produz é pânico: aceitamos que a polícia se comporte não
como o agente público a nos proteger de símios ensandecidos com ossos na mão,
mas exatamente igual aos animais retratados no filme.
Nesses termos, o estado completo de vulnerabilidade
está criado. Ontem, mais precisamente em 14 de julho de 2013, foi a vez de
Amarildo. Amanhã pode ser eu. Ou você. Enquanto aplaudimos as soluções
arbitrárias, que aniquila tanto o bandido como o inocente, é a sorte, e não a
lei, o elemento a impedir que um animal armado (fardado ou não) com arma na
mão, pelo simples fato de acordar num belo dia de mau humor, coloque nossas
cabeças em um saco plástico e nos sufoque até a morte.
Fonte: Carta Capital
Fonte: Carta Capital
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