A Passagem das Horas [a]
Sentir tudo de todas as maneiras,
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter
todas as opiniões,
Ser
sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar
a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E
amar as coisas como Deus.
Eu,
que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu,
que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que
a dor real das crianças em quem batem
(Ah,
como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E
porque é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu,
enfim, que sou um diálogo contínuo
Um
falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando
os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E
faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu,
enfim, literalmente eu,
E
eu metaforicamente também,
Eu,
o poeta sensacionista, enviado do Acaso
Às
leis irrepreensíveis da Vida,
Eu,
o fumador de cigarros por profissão adequada,
O
indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere
pensar em fumar ópio a fumá-lo
E
acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu,
este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem
personalidade com valor declarado,
Eu,
o investigador solene das coisas fúteis,
era
capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso
E
que acho que não faz mal não ligar importância à pátria
Porque
não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz...
Eu,
que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
Como
uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou
uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu,
a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu,
o polícia que a olha, parado para trás na álea,
Eu,
a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com
guizos,
Eu,
a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada
através das árvores do jardim público,
Eu,
o que os espera a todos em casa,
Eu,
o que eles encontram na rua
Eu,
o que eles não sabem de si-próprios,
Eu,
aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu,
o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O
cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O
lugar onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A
cicatriz do sargento mal-encarado,
O
sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A
chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E
tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu,
o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu,
os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu,
a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O
portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O
sacana do José que prometeu vir e não veio
E
a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu,
tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta
coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,
E
as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu,
a infelicidade-nata de todas as expressões,
A
impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem
que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,
E
o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
Sim,
eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E
uso o monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim,
Que
levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas
acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não
tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim,
enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O
baú das iniciais gastas,
A
intonação das vozes que nunca ouviremos mais —
Deus
guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E
a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A
Brígida prima da minha tia,
O
general em que elas falavam — general quando elas eram pequenas,
E
a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive
le mélodrame où Margot a pleuré!
Caem
folhas secas no chão irregularmente,
Mas
o facto é que sempre é outono no outono,
E
o inverno vem depois fatalmente,
E
há só um caminho para a vida, que é a vida...
Esse
velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos
Esse
opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E
a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem
haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.
Todos
os amantes beijaram-se na minha alma,
Todos
os vadios dormiram um momento em cima de mim
Todos
os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram
a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E
houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(Aquela
cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em
cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com
as cabeças femininas coiffées de lin
E
todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela
que é o anel deixado em cima da cómoda,
E
a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita
cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim
como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...
Dormir
como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente
para todo o resto do Universo,
E
que os carros me passem por cima)
Fui
para a cama com todos os sentimentos,
Fui
souteneur de todas as emoções,
Pagaram-me
bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei
olhares com todos os motivos de agir,
Estive
mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre
imensa das horas!
Angústia
da forja das emoções!
Raiva,
espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A
cadela a uivar de noite,
O
tanque da quinta a passear à roda da minha insónia
O
bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A
madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda
a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó
fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia
intelectual de sentir a vida!
Obter
tudo por suficiência divina —
As
vésperas, os consentimentos, os avisos,
As
coisas belas da vida —
O
talento, a virtude, a impunidade,
A
tendência para acompanhar os outros a casa,
A
situação de passageiro,
A
conveniência em embarcar lá para ter lugar,
E
falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E
a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder
rir, rir, rir despejadamente,
Rir
como um copo entornado,
Absolutamente
doido só por sentir,
Absolutamente
roto por me roçar contra as coisas,
Ferido
na boca por morder coisas,
Com
as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E
depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
Álvaro de Campos,
heterônimo de Fernando Pessoa
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