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Morte e Vida Severina - Fragmento

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO



—  Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

—  é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe

neste latifúndio.
—  Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
—  é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
—  é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
—  é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
                                —  Viverás, e para sempre 
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
—  Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
—  Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
—  Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
—  Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
—  Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
—  Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
—  Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
—  Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
—  Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
—  Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
—  Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

—  Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
—  Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)
—  Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
—  Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
—  Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)
—  Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

  —  Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
—  Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
—  Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
—  Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
—  Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
                                   - Já não tens força na mão 
deixa-te semear no leirão.

(João Cabral de Melo Neto)



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